Retrospectiva Brasil 2019 - Transparência Internacional Brasil

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RETROS -PECTIVA BRASIL 2019


Autor | Guilherme France Pesquisadores | Dário Machado, Guilherme Donega, Maria Dominguez, Renato Morgado, Vinicius Reis Revisores | Bruno Brandão, Maíra Martini Designer Gráfico | Rafael Regatieri Tradução | Vicente Melo Revisão (conteúdo original em inglês) | Quote Este relatório faz grande proveito de outros estudos realizados pela Transparência Internacional, como Visão geral da corrupção e da anticorrupção no Brasil e Brasil – Retrocessos nos Marcos Legais e Institucionais Anticorrupção.

Todos os esforços foram empenhados para verificar a exatidão das informações contidas neste relatório. Acredita-se que todas as informações estavam corretas em janeiro de 2020. No entanto, a Transparência Internacional – Brasil não se responsabiliza pelas consequências do uso dessas informações para outros fins ou em outros contextos. Este relatório foi traduzido a partir da versão em inglês originalmente publicada em 24 de janeiro. 2020 Transparência Internacional - Brasil. Exceto se apontado de outra forma, este trabalho está sob licença CC BYND 4.0 DE. Citações são permitidas. Favor entrar em contato com a Transparência Internacional - Brasil – brasil@br.transparency.org – para tratar de pedidos para usar o relatório. Retrospectiva Brasil 2019: ISBN nº 978-65-990735-0-2 www.transparenciainternacional.org.br



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GOVERNO FEDERAL

CONGRESSO NACIONAL

TRIBUNAIS

ALEGAÇÕES DE CORRUPÇÃO

LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

ANTIMONEY LAUNDERING

ELEIÇÕES E PARTIDOS POLÍTICOS

CUMPRIMENTO DA LEI

INTERFERÊNCIA POLÍTICA POLÍTICAS ANTICORRUPÇÃO UNIDADE DE INTELIGÊNCIA FINANCEIRA

PACOTE ANTICORRUPÇÃO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO OUTRAS QUESTÕES

INQUÉRITO SOBRE FAKE NEWS


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MINISTÉRIO PÚBLICO CUMPRIMENTO DA LEI

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SOCIEDADE CIVIL EA IMPRENSA

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RECOMEN -DAÇÕES

SUMÁRIO


Esse foi o tom que regeu a agenda anticorrupção no Brasil ao longo de 2019. Grandes expectativas foram recebidas com poucos resultados. A corrupção foi uma das maiores preocupações dos eleitores durante as eleições de 2018 e continua sendo um dos maiores problemas para os brasileiros. O presidente Jair Bolsonaro e diversos membros do Congresso se elegeram com base em promessas de combater a corrupção e implementar reformas efetivas. Além de não terem alcançado esses objetivos, eles causaram, junto com o Supremo Tribunal Federal, vários retrocessos no arcabouço anticorrupção do país. Há uma gama de propostas de reformas em pauta, dentre as quais se destacam as “Novas Medidas Contra a Corrupção”,

um pacote de legislação anticorrupção desenvolvido pela sociedade brasileira. No entanto, em vez de debater e refinar essas reformas, agentes públicos, nos três Poderes da República, passaram o ano contestando e debilitando instrumentos básicos de combate à corrupção. Por exemplo, o presidente do Supremo Tribunal Federal impediu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) de compartilhar informações com investigadores, uma prática que vinha ocorrendo há mais de 20 anos.


Foto: Davidsonluna / Unsplash

RETROSPECTIVA BRASIL 2019

EM VEZ DE PROGRESSO, RESISTÊNCIA. EM VEZ DE REFORMAS, RETROCESSOS. Embora o trabalho no nível federal tenha se mostrado desafiador, o potencial para a promoção da integridade e da transparência no nível subnacional nunca foi tão nítido. Os estados e municípios fornecem serviços básicos, como educação e saúde, à população. Por isso, a corrupção nesses âmbitos tem impacto direto nos membros mais vulneráveis da sociedade, aprofundando a desigualdade e a injustiça social. A Transparência Internacional – Brasil decidiu aproveitar essa oportunidade para trabalhar junto com os governos estaduais, com o objetivo central de aprimorar suas ferramentas de prevenção, detecção e repressão à corrupção. A presente revisão anual busca destacar os desdobramentos mais relevantes para a agenda anticorrupção no Brasil ao longo de 2019. Ela foi dividida em cinco capítulos principais, que abordam os três Poderes (Executivo, Legislativo

e Judiciário), o Ministério Público e a imprensa e a sociedade civil. Em cada capítulo são apresentados desdobramentos positivos e negativos, incluindo, entre outros, novas legislações, decisões judiciais e administrativas, e escândalos de corrupção. O relatório conclui com algumas recomendações da Transparência Internacional.


uma série de decisões tomadas pelo Executivo Federal demonstra sinais de interferência política em órgãos que são peças-chave na luta contra a corrupção, como a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público

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Foto: José Cruz / Agência Brasil

GOVERNO FEDERAL

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O presidente Jair Bolsonaro fez uma campanha muito marcada pela sua plataforma anticorrupção. Contudo, o primeiro ano do seu governo apresentou pouco progresso na implementação de uma agenda anticorrupção. Além disso, as promessas de estabelecer uma política de tolerância zero com a corrupção não foram cumpridas. Ademais, uma série de decisões tomadas pelo Executivo Federal demonstra sinais de interferência política em órgãos que são peças-chave na luta contra a corrupção, como a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público. As ações positivas do governo se limitam, por enquanto, ao estabelecimento de normas mais rígidas para nomeações políticas, a investigações criminais de esquemas de corrupção conduzidas pela Polícia Federal, assim como ao desenvolvimento institucional e ao fortalecimento de capacidades promovidos pela Controladoria-Geral da União e pelo Ministério da Justiça. Retrospectiva Brasil 2019

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Fotos: 1- Valter Campanato / Agência Brasil | 2- Antonio Cruz / Agência Brasil | 3- Marcelo Camargo / Agência Brasil 4- Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

ALEGAÇÕES DE CORRUPÇÃO

Ao longo do ano passado, alegações de corrupção atingiram alguns dos aliados mais próximos e familiares do presidente Bolsonaro, e pouco foi feito para afastá-los de seus postos oficiais ou do núcleo de poder do governo. Em fevereiro, foram veiculadas alegações relativas ao envolvimento de Marcelo Álvaro Antônio, deputado federal e Ministro do Turismo, num esquema de corrupção em Minas Gerais. Na posição de presidente de seu partido no estado, Marcelo Antônio teria desviado fundos de campanha de candidatas do partido, que deveriam receber pelo menos 30 por cento dos recursos púbicos destinados aos partidos políticos. Houve também alegações de que ele teria escolhido mulheres para fazerem campanha como candidatas “laranja” no intuito de usar seus fundos de campanha em benefício próprio. Por fim, também houve alegações de que ele teria ameaçado algumas das candidatas para não deporem contra ele. Em outubro, Antônio foi denunciado por falsidade ideológica, associação criminosa, e fraude. Apesar das denúncias, Marcelo Antônio continua no cargo de Ministro do Turismo. Em maio, o senador Fernando Bezerra Coelho, líder governista no Senado, teve seus bens bloqueados como parte de uma investigação na qual foi acusado de receber propinas de construtoras em troca de apoio a seus interesses, enquanto trabalhava no governo de Pernambuco. Mesmo assim, ele permanece sendo líder governista no Senado. Em outubro, o presidente do Partido Social Liberal (PSL), o deputado federal Luciano Bivar, se tornou alvo de investigações sobre o uso indevido de fundos de campanha que eram destinados às candidatas do partido no seu estado, Pernambuco. O PSL foi o 10

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partido do presidente Bolsonaro durante as eleições de 2018. Desde o fim de 2018, o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, está sob investigação por supostamente ter recebido parte dos salários dos funcionários de seu gabinete, enquanto ainda era deputado estadual no Rio de Janeiro, entre 2007 e 2018. Alguns deles teriam sido funcionários “fantasmas” que nunca de fato trabalharam na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ). Junto com seu chefe de gabinete, Fabrício Queiroz, Flávio teria recebido mais de dois milhões de reais em depósitos regulares de dinheiro em espécie. Os investigadores suspeitam que Flávio criou um esquema de lavagem de dinheiro através do uso de imóveis e de uma loja de doces. Há também outras investigações sobre a família Bolsonaro, sem relação com o Caso Queiroz. Além desses inquéritos, uma série de relatos de casos de nepotismo generalizado envolvendo o presidente Bolsonaro e seus três filhos na época em que tinham cargos públicos no Rio de Janeiro e em Brasília veio à tona. O exemplo mais recente foi a decisão do presidente Bolsonaro de nomear seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, como embaixador do Brasil nos Estados Unidos.


INTERFERÊNCIA POLÍTICA Houve interferência política nas nomeações e exonerações em cargos-chave para os esforços anticorrupção no Brasil. Em 2019, por exemplo, cresceu a interferência política na Polícia Federal (PF), causando descontentamento entre investigadores, detetives e diretores. Em agosto, o presidente Bolsonaro removeu Ricardo Saadi do cargo de chefe da Superintendência Regional da PF no Rio de Janeiro, o que levou alguns delegados a ameaçarem pedir demissão coletiva. Bolsonaro declarou que sua decisão foi motivada por “questões de desempenho”. Contudo, avaliações internas feitas pela Polícia Federal revelaram que, durante a administração de Saadi, o estado do Rio de Janeiro subiu da 24ª colocação entre os estados brasileiros para a quarta colocação, em termos de desempenho. O presidente também ameaçou demitir Maurício Valeixo, diretor-geral da PF, que tinha sido nomeado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro.

No que diz respeito à Receita Federal do Brasil (RFB), que também é responsável por combater a evasão fiscal e, nessa capacidade, tem intensa colaboração com outras agências de combate ao crime na luta contra a corrupção e a lavagem de dinheiro, houve três mudanças relevantes no topo de sua hierarquia. Marcos Cintra, Secretário Especial, e João Paulo Ramos Fachada Martins da Silva, Subsecretário-Geral, foram demitidos em setembro e agosto, respectivamente. O presidente Bolsonaro também demitiu Ricardo Pereira Feitosa, chefe da área de inteligência fiscal da RFB, responsável pela cooperação e compartilhamento de informações com outras agências de combate ao crime. Embora as mudanças possam ter outras motivações, incluindo divergências sobre decisões políticas, é cediça a insatisfação de Bolsonaro com a RFB. Ele expressou publicamente seu descontentamento, acusando a RFB de perseguir os negócios de sua família e fazer um escrutínio excessivo sobre eles. Até uma multa aplicada ao irmão do presidente, referente a uma pequena irregularidade fiscal, foi usada como justificativa para tamanha desaprovação. Houve também outros relatos de interferência política em cargoschave. Esforços foram empenhados para substituir o chefe da alfândega do Porto de Itaguaí – um dos portos mais movimentados do país no que toca à entrada e à saída de mercadorias, incluindo drogas e armas ilícitas – assim como o chefe da RFB no Rio de Janeiro. A possibilidade de haver nomeações políticas para Foto: Marcello

Casal Jr / Agên

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Foto: Marcello Ca

preencher esses cargos acirraram as tensões entre servidores públicos da RFB e o presidente.

em agosto, o presidente Bolsonaro quebrou a tradição e escolheu, como Procurador-Geral da República, Augusto Aras, um procurador que que não havia sequer concorrido nas eleições internas organizadas pelos procuradores de carreira

De acordo com relatos, o presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) – a Unidade de Inteligência Financeira do Brasil –, Roberto Leonel de Oliveira Lima, foi demitido por conta de suas críticas à decisão do Supremo Tribunal Federal que paralisava as atividades da instituição. Oliveira Lima é um auditor fiscal experiente em investigações de lavagem de dinheiro, tendo atuado por quatro anos na Força-Tarefa da Operação Lava Jato. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), o principal órgão antitruste do país, foi esvaziado e impossibilitado de cumprir seu papel jurídico. Entre julho e outubro, o Conselho, que é composto por sete membros, teve apenas três conselheiros, o que impediu o seu funcionamento normal. A interferência política se tornou clara quando o presidente Bolsonaro voltou atrás na nomeação de dois novos conselheiros escolhidos pelos Ministros da Economia e da Justiça, ambos com notória experiência nos campos do Direito e da Economia. Em vez disso, o presidente Bolsonaro, confirmou dois novos nomes, negociados com alguns senadores, naquilo que se relatou ter sido 12

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um acordo político para nomear um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Além das questões de nomeações políticas para cargos do Executivo, em agosto, o presidente Bolsonaro quebrou a tradição e escolheu, como Procurador-Geral da República, Augusto Aras, um procurador que que não havia sequer concorrido nas eleições internas organizadas pelos procuradores de carreira. Aras foi aprovado pelo Senado e tomou posse como chefe do Ministério Público. O processo de nomeação da liderança do Ministério Público (MP) é altamente político – é atribuição exclusiva do presidente da república nomear, dentre os procuradores de carreira, o Procurador-Geral, sujeito à aprovação do Senado. Contudo, desde 2003, uma importante tradição ganhou força. O presidente passou a escolher o Procurador-Geral a partir da chamada lista tríplice, uma relação com três nomes escolhidos via eleição organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República. Tal prática se tornou uma maneira eficiente de se escolher nomes que gozassem de boa reputação internamente, e para aumentar a independência da instituição.

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POLÍTICAS ANTICORRUPÇÃO Em janeiro, o vice-presidente Hamilton Mourão assinou um decreto que acarretava um aumento dramático no número de oficiais do governo federal com a capacidade de declarar uma determinada informação como sigilosa e, portanto, indisponível ao acesso público. Mais de mil pessoas seriam investidas desse poder, o que representaria uma ameaça de redução na transparência da informação pública em todo o governo. Em março, o presidente Bolsonaro assinou um decreto que impôs restrições às nomeações de cargos comissionados e de confiança – que normalmente são nomeações políticas – no âmbito da administração federal. De acordo com as novas regras, indivíduos que seriam inelegíveis segundo os critérios da Lei da Ficha Limpa não podem ser nomeados para esses cargos. Além disso, o decreto também exige reputação ilibada, assim como experiência profissional e acadêmica nas áreas relevantes para aquela função. Em julho, o presidente assinou outro decreto (9.916/2019) ampliando o escopo dessas restrições para alcançar outros cargos da administração federal. Embora ainda não tenha saído do papel, a Controladoria-Geral da União (CGU) também contribuiu, apresentando uma proposta de decreto que regulamentaria, ainda que parcialmente, as atividades de lobby perante o poder Executivo.

Em 2019, a CGU promoveu iniciativas importantes para a prevenção, detecção e combate à corrupção. Para consolidar as ações preventivas, algumas medidas foram tomadas com relação ao desenvolvimento das Ouvidorias e Corregedorias, nos âmbitos federal, estadual e municipal. Somado a isso, houve também esforços para se garantir a proteção aos whistleblowers (“denunciantes de irregularidades”) e para o maior desenvolvimento de plataformas digitais, como o Fala.BR, possibilitando uma resposta mais efetiva para as denúncias de corrupção. Além disso, a CGU ofereceu programas de fortalecimento de capacidades, com o intuito de promover a integridade nos setores público e privado. Visando aumentar sua capacidade de detectar a corrupção, a agência aprimorou o seu sistema de avaliação de licitações e sua ferramenta de análise de risco para parcerias que envolverem outras esferas do governo. A CGU também trabalhou com agências federais e estaduais em 58 operações especiais em diversas áreas, como saúde, transportes e educação.

De acordo com as novas regras, indivíduos que seriam inelegíveis segundo os critérios da Lei da Ficha Limpa não podem ser nomeados para esses cargos. Além disso, o decreto também exige reputação ilibada, assim como experiência profissional e acadêmica nas áreas relevantes para aquela função. Acordos de leniência foram firmados por uma série de companhias (Braskem, Technip, Flexibras, Camargo Correa, Nova Participações, e OAS) com a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia– Geral da União (AGU). Tais acordos resultaram em pagamentos de cerca de 7,5 bilhões de reais. Retrospectiva Brasil 2019

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Foto: Vinícius Mendonça / Ibama

Em dezembro, o presidente Bolsonaro assinou uma Medida Provisória que possibilitava a legalização de terras ocupadas (ilegalmente) antes de 2018.

Em junho, após anos de atraso, a Receita Federal passou a exigir de empresas os dados de seus beneficiários finais. Essa medida ajudará a combater a lavagem de dinheiro e fornecerá informações que poderão ser aproveitadas por procuradores em investigações de casos de corrupção. No entanto, isso ainda não é suficiente, em grande parte porque o cadastro com os dados dos beneficiários ainda não se tornou público.

A Polícia Federal conduziu diversas investigações importantes sobre esquemas de corrupção por todo o Brasil. Dentre elas, se destacam as Operações Pés de Barro, Calvário e Faroeste. A Operação Faroeste, por exemplo, revelou um esquema, no qual magistrados aceitavam propinas para emitir decisões que favoreciam fazendeiros, reconhecendo áreas griladas. Por causa disso, mais de 3.600 km² de terra foram apropriados ilegalmente. Junto com advogados, servidores públicos e fazendeiros, vários juízes da Bahia, inclusive o presidente do tribunal do estado, estão sendo investigados pela operação, muitos deles tendo sido presos e afastados temporariamente de seus cargos.

Tais acordos resultaram em pagamentos de cerca de 7,5 bilhões de reais.

No entanto, no que se refere ao meio-ambiente, as ações do governo federal durante 2019 podem ter facilitado as atividades de organizações criminosas responsáveis pelo desmatamento ilegal, pela exploração madeireira ilegal e pela grilagem. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – a agência pública federal responsável por combater crimes ambientais – foi profundamente enfraquecida por Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente. Por exemplo, ao longo do ano, o IBAMA aplicou o menor número de multas ambientais em 15 anos, ao passo que o desmatamento atingia o maior índice desde 2008.

Em abril, o presidente Bolsonaro assinou uma Medida Provisória – chamada de Lei da Liberdade Econômica –, com o intuito de diminuir a burocracia. Ela foi aprovada pelo Congresso e promulgada em setembro. Embora contenha muitos aspectos polêmicos, a lei tem potencial para diminuir a corrupção, visto que ela digitaliza certos procedimentos. Em 2019, o Ministério da Justiça reestruturou a REDE-LAB, uma rede nacional de laboratórios de tecnologia voltada para a detecção de esquemas de lavagem de dinheiro. O Ministério também incentivou a implementação de 29 delegacias especializadas no combate à corrupção em 18 estados brasileiros. A Polícia Federal também foi fortalecida, com a contratação de 1.200 novos agentes. 14

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A Polícia Federal também foi fortalecida, com a contratação de 1.200 novos agentes. Em dezembro, o presidente Bolsonaro assinou uma Medida Provisória que possibilitava a legalização de terras ocupadas (ilegalmente) antes de 2018. Essa medida promoveu a impunidade no que toca à grilagem, que é uma das maiores causas do desmatamento na Amazônia, e é um foco de corrupção. Ela encorajou ainda mais a ocupação ilegal de terras públicas, muitas das quais estão situadas em áreas de proteção ambiental e reservas indígenas.


Uma das primeiras medidas de Bolsonaro como presidente, em janeiro, foi implementar uma mudança no arcabouço institucional do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) – a Unidade de Inteligência Financeira do Brasil. Desde sua fundação em 1998, ele foi parte do Ministério da Economia, onde desempenhou um papel importante no fornecimento de inteligência financeira pertinente a casos de corrupção. Contudo, a Medida Provisória nº 870 transferiu o COAF para dentro da estrutura do Ministério da Justiça. Medidas Provisórias têm efeito imediato, mas ficam sujeitas à aprovação do Congresso. O COAF, portanto, foi transferido para o Ministério da Justiça, permanecendo nele até maio, quando o Congresso revogou sua transferência e reinstaurou o ordenamento antigo, com o retorno do COAF para o Ministério da Economia. Reportagens associaram a decisão do Congresso de desfazer a colocação do COAF dentro do Ministério da Justiça com a forte oposição de alguns parlamentares ao ministro Sérgio Moro, ex-juiz da Operação Lava-Jato, que liderou a transferência do Conselho. Após a derrota no Congresso, o presidente Bolsonaro assinou uma nova Medida Provisória (nº 893), que transferia o COAF para o Branco Central, argumentando que isso reduziria a interferência política sobre a organização. No entanto, o projeto de lei que daria autonomia ao Banco Central (e um mandato fixo de quatro anos ao seu presidente) ainda está sendo discutido no Congresso, e há poucos indícios de que será aprovado. Um estudo comparativo de melhores práticas recente, feito pela Transparência Internacional, também mostra que esse arranjo é uma escolha de arranjo institucional extremamente atípico.

UNIDADE DE INTELIGÊNCIA FINANCEIRA Embora alguns aspectos da nova estrutura normativa do COAF inicialmente tenham levantado alguns questionamentos, o Congresso os examinou e a legislação instituída para (re)organizar o COAF dentro da estrutura do Banco Central é, em larga medida, adequada, embora o Grupo de Ação Financeira (GAFI) ainda não tenha analisado o resultado final do processo legislativo. Um assunto que certamente deve chamar a atenção do GAFI, e quiçá reabrir as discussões sobre o tema, é o fato de o Congresso ter excluído a responsabilidade de combater o financiamento do terrorismo da missão do COAF. seção 01 - positivos & negativos O presidente Bolsonaro assinou um decreto impondo restrições às nomeações de cargos comissionados e de confiança – que normalmente são nomeações políticas – na administração federal. A Polícia Federal foi fortalecida com a contratação de 1.200 novos agentes e conduziu importantes investigações de esquemas de corrupção por todo o Brasil, como as Operações Pés de Barro, Calvário e Faroeste. O Ministério da Justiça e Segurança Pública incentivou a implementação de 29 delegacias especializadas no combate à corrupção em 18 estados brasileiros. A Controladoria-Geral da União (CGU) fomentou o sistema de Ouvidorias a nível federal, estadual e municipal, e aprimorou a proteção concedida a denunciantes de irregularidades. Alegações de corrupção atingiram alguns dos aliados mais próximos e familiares do presidente Bolsonaro, e pouco foi feito para afastá-los de seus cargos, ou do núcleo de poder do governo. Houve interferência política em nomeações e exonerações para cargos-chave nos esforços anticorrupção. A Unidade de Inteligência Financeira do país passou por um ano de enorme instabilidade, tendo sido transferida para dentro do Ministério da Justiça, de volta para o Ministério da Economia e por fim, para o Banco Central. O presidente Bolsonaro assinou uma Medida Provisória que possibilita a legalização de terras ocupadas (ilegalmente) antes de 2018, o que promove a impunidade no que toca à grilagem. Faltou ao governo apresentar e defender no Congresso propostas ambiciosas de reformas anticorrupção, de forma a enfrentar as causas estruturais da corrupção sistêmica brasileira.

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Foto: Pedro França / Agência Senado

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CONGRESSO NACIONAL Apesar das grandes expectativas de um renovado Congresso, para o qual muitos deputados federais e senadores se elegeram graças à pauta anticorrupção, houve poucos avanços nessa agenda. Além disso, uma série de novas legislações que ameaçam um processo de décadas de fortalecimento dos arcabouços jurídico e institucional anticorrupção foram aprovadas. Retrospectiva Brasil 2019

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Foto: Engin_Akyurt / Pixabay

LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE Em setembro, uma lei de abuso de autoridade foi aprovada após um processo legislativo apressado, que não permitiu maiores discussões, nem a participação de especialistas e das autoridades afetadas. Embora a lei seja, de modo geral, direcionada a agentes públicos que abusarem do poder, seus dispositivos evidenciam que ela se volta nitidamente a juízes, promotores e delegados, abrindo a porta para a criminalização das suas atividades regulares.

Brasil e em outros lugares”. Em seguida, uma missão de alto nível foi enviada a Brasília para transmitir isso – assim como outras preocupações1 – diretamente às autoridades brasileiras.

Há diversas disposições vagas e indefinidas na lei, a maioria das quais abre grandes brechas para esses agentes sofrerem retaliações por parte de indivíduos poderosos que estejam sendo investigados por corrupção. Por exemplo, a lei prevê pena de um a quatro anos de prisão para qualquer agente público que instaure processo “sem justa causa” (art. 30). A constitucionalidade de muitas dessas disposições foi questionada por associações de juízes e procuradores, mas o Supremo Tribunal Federal ainda não proferiu nenhuma decisão sobre a questão.

Há diversas disposições vagas e indefinidas na lei, a maioria das quais abre grandes brechas para esses agentes sofrerem retaliações por parte de indivíduos poderosos que estejam sendo investigados por corrupção.

O Grupo de Trabalho sobre Suborno da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (WGB, na sigla em inglês) já tinha se manifestado sobre os riscos que essa legislação acarretava para a independência dos procuradores e juízes. Após a aprovação da lei, o WGB publicou uma declaração em outubro, observando que “a aprovação de um projeto de lei que introduz uma definição demasiado abrangente do que configura abuso de autoridade por parte de juízes e procuradores inibiria consideravelmente os processos e investigações anticorrupção no

Embora o país de fato precise enfrentar um problema severo de abuso sistêmico de autoridade, o texto vago da lei e o processo legislativo apressado produziram uma solução inadequada que pode acabar servindo mais à impunidade dos réus poderosos, e pode servir também como ferramenta para retaliação contra agentes da lei.

1- O WGB também manifestou sua preocupação com o impacto das liminares do Supremo Tribunal Federal que limitaram o uso de informações produzidas pela Unidade de Inteligência Financeira, Receita Federal, e outras agências administrativas em investigações criminais. Junto com outras medidas por parte do Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União, gerou-se a preocupação de que essas ações possam obstruir seriamente a capacidade do país de detectar e combater efetivamente a corrupção.

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Mirando as eleições municipais de 2020, o Congresso aprovou também uma reforma abrangente em outubro, pertinente à legislação aplicável a partidos políticos e campanhas eleitorais. Contudo, em vez de trazer melhoras para o sistema atual, a nova lei diminuiu ainda mais as exigências de transparência e accountability para partidos políticos, multiplicando as brechas legais para o financiamento ilícito de campanhas. Outras mudanças são tocantes às novas possibilidades de gastos usando recursos públicos: aquisição e renovação das sedes dos partidos, aquisição ou aluguel de imóveis, postagens patrocinadas nas mídias sociais e passagens aéreas. Essa legislação também determinou que partidos não devem ser tratados pelas instituições financeiras como Pessoas Politicamente Expostas (PPEs). É um esforço para proteger os partidos políticos do escrutínio e exigências adicionais de transparência. Ela também assegurou que, para as eleições de 2020, partidos e campanhas serão financiados com recursos públicos distribuídos por dois fundos: o Fundo Especial de Financiamento de Campanha e o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos. O Congresso estabeleceu que o Fundo Especial de Financiamento de Campanha disporia de cerca de 500 milhões de dólares, e que o Fundo Partidário receberia aproximadamente 230 milhões de dólares. Apesar da elevada pressão social feita para que o presidente Bolsonaro vetasse a legislação, ele alegou, com pouco embasamento, não ter o poder de vetar o projeto e, com isso, o sancionou no início de 2020.

ELEIÇÕES E PARTIDOS POLÍTICOS Contudo, em vez de trazer melhoras para o sistema atual, a nova lei diminuiu ainda mais as exigências de transparência e accountability para partidos políticos, multiplicando as brechas legais para o financiamento ilícito de campanhas.

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Foto: José Cruz / Agência Brasil

Em fevereiro, um pacote anticrime foi apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Esse pacote tratava de outros temas para além da corrupção, como o crime organizado e a segurança pública, e acabou sendo mesclado com outro conjunto de propostas anticrime – apresentado anteriormente pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes –, para debate no Congresso. O pacote, portanto, já era limitado no que se referia à sua dimensão anticorrupção e, em larga medida, concentrava medidas contra crimes violentos e crime organizado. Particularmente, havia poucas medidas destinadas a prevenir a corrupção. As discussões dentro de um dos grupos de trabalho da Câmara dos Deputados levaram a maior parte do ano e acabaram reconfigurando o pacote. Por fim, uma versão do pacote foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Bolsonaro. No entanto, essa 20

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versão continha poucas das disposições que se encontravam originalmente no pacote de Moro. Para a agenda anticorrupção, o maior destaque foi a aprovação do confisco alargado para ativos provenientes de atividades criminosas. Outra medida contida no pacote anticorrupção que foi aprovado consistia de melhorias no sistema de proteção a denunciantes de irregularidades no setor público. Todos os órgãos da Administração Pública passaram a ter a obrigação de manter uma unidade de ouvidoria ou correição, responsáveis pelo recebimento de denúncias de condutas ilícitas e atos que lesem o interesse público. A legislação passou também a estabelecer proteções relativas à confidencialidade das identidades dos denunciantes e contra a retaliação, além de especificar recompensas monetárias concedidas àqueles denunciantes cujas informações resultarem em recuperação de ativos.


PACOTE ANTICORRUPÇÃO Operação Lava-Jato, revelada pelas publicações da “Vaza Jato”. O caso chamou atenção para o sistema judicial do Brasil, suscitando a discussão sobre reformas que possam garantir uma maior distância entre o juiz sentenciante e os procuradores.

Embora ainda seja modesta quando comparada às melhores práticas legislativas pertinentes à proteção de denunciantes, a nova instrução parece ser um passo na direção certa. Futuras melhorias na legislação precisam levar em consideração as proteções dadas a denunciantes do setor privado, assim como detalhar melhor os procedimentos de concessão de proteção. Por outro lado, essa lei recém-promulgada também incluía disposições que criaram o chamado “juiz de garantias”. Essencialmente, ela determina que um mesmo juiz não pode presidir as investigações e os procedimentos de julgamento do mesmo caso. Essa separação de deveres busca garantir a imparcialidade do julgamento e da sentença proferida pelo juiz no caso em questão. O clamor pela criação do juiz de garantias ganhou força graças às preocupações relativas à proximidade excessiva entre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da

Embora essa medida tenha recebido grande aclamação, sendo vista como uma reforma necessária da justiça criminal, ela foi aprovada num processo legislativo apressado, sem ter havido os estudos necessários para a implementação de uma reestruturação no sistema judicial do país que essa reforma demanda. Programada para entrar em vigor em janeiro de 2020, os altos custos de se contratar mais juízes, o risco de aumento da lentidão em procedimentos judiciais (e da impunidade), e a situação difícil das cidades menores, onde normalmente há apenas um juiz, são apenas algumas das preocupações levantadas desde a aprovação da Lei n. 13.964/2019. Retrospectiva Brasil 2019

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TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO Em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) conduziu 243 inspeções e condenou mais de 2 mil indivíduos e 82 empresas por irregularidades cometidas com verbas públicas. O TCU também replicou a metodologia aplicada anteriormente ao poder Executivo federal e mapeou os riscos de fraude e corrupção em todos os órgãos públicos do estado do Mato Grosso do Sul. Dando prosseguimento a esse quadro, o Tribunal começou o processo de aplicar essa metodologia no país inteiro.

Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado

Por outro lado, junto com o Supremo Tribunal Federal (mais informações na seção sobre o Judiciário), o TCU também interferiu na auditoria feita pela Receita Federal sobre Pessoas Politicamente Expostas. O Ministro Bruno Dantas pediu que a RFB enviasse detalhes sobre todas as atividades de auditoria feita sobre PPEs nos últimos cinco anos, inclusive a identidade de todos os servidores públicos que tiveram acesso a essa informação. Esse pedido foi considerado como algo que estava fora da competência do Tribunal de Contas, e foi visto como uma tentativa de intimidar os auditores. Outra decisão que foi alvo de críticas por virtude de seu caráter intimidador foi o pedido feito ao Supremo Tribunal Federal que visava obter mensagens divulgadas (pela Vaza Jato), de uma conversa entre um dos procuradores do TCU e membros da Força-Tarefa da Operação Lava-Jato. 22

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OUTRAS QUESTÕES Além desses graves retrocessos, é nítida a falta de progresso no que tange à passagem de leis que poderiam ter um impacto positivo nos esforços anticorrupção do Brasil. Um projeto de lei que trazia reformas para as regras de licitações foi aprovada pelo Congresso em junho, mas sua tramitação ainda não se concluiu. A Câmara debateu a inclusão de um projeto de lei que tratava de regulações sobre o lobbying na pauta da votação de março, mas isso não chegou a se concretizar. Além disso, a Câmara dos Deputados votou para suspender um decreto do presidente Bolsonaro que, numa tentativa de reduzir a transparência da informação pública, aumentaria o número de oficiais do governo com o poder de declarar um determinado documento como sigiloso. seção 02 - positivos & negativos Um projeto de lei que reforma as regras para licitações foi aprovado pelo Congresso em junho, mas ainda não foi adotado. Foi aprovado o confisco alargado para ativos oriundos de atividades criminosas, e melhorias foram feitas no sistema de proteção a denunciantes de irregularidades no setor público. O Congresso agiu com rapidez para impedir uma tentativa feita pelo presidente Bolsonaro para reduzir a transparência na informação pública. Uma lei de abuso de autoridade foi aprovada após um processo legislativo apressado e, embora a lei seja, de modo geral, voltada para membros do governo que abusarem do poder, seus dispositivos têm um foco nítido em investigadores e juízes, possibilitando a criminalização das suas atividades regulares. Novas leis diminuíram ainda mais as exigências de transparência e accountability para partidos políticos, multiplicando as brechas legais para o financiamento ilícito de campanhas.

A Transparência Internacional liderou a elaboração de um pacote abrangente de reformas, as “Novas Medidas contra a Corrupção”, que se tornaram uma referência importante no debate anticorrupção do país, mas, por ora, poucas propostas foram aprovadas – ou sequer discutidas – pelo Congresso. Originadas deste pacote, foram aprovadas na Câmara uma legislação que busca agilizar os processos judiciais do Supremo Tribunal Federal e melhorias para as normas que regulamentam ações populares. Ambas aguardam apreciação pelo Senado. Por fim, embora a disseminação das fake news (desinformação) e seu impacto deletério sobre a democracia devessem constituir uma das maiores preocupações para os legisladores, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que tratava do assunto trouxe poucos resultados, servindo apenas como oportunidade de exibicionismo político para os membros integrantes e outros políticos presentes, sendo alguns deles responsáveis eles próprios por espalhar fake news. Retrospectiva Brasil 2019

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Foto: Dorivan Marinho / SCO / STF

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seção 03

TRIBUNAIS

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal foi responsável por alguns dos retrocessos mais graves na luta contra a corrupção no Brasil. Suas decisões, mesmo quando são tomadas por um único ministro, produziram impactos sistêmicos, e muitas vezes houve uma falta de accountability em relação a essas decisões.

Retrospectiva Brasil 2019

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ANTIMONEY LAUNDERING Em julho, uma liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, praticamente paralisou o sistema anti-lavagem de dinheiro do Brasil, proibindo o COAF de compartilhar relatórios de inteligência sobre transações financeiras suspeitas com a polícia e promotores. Argumentando que seria preciso obter autorização judicial antes de se compartilhar esse tipo de informação, Toffoli também suspendeu todas as investigações criminosas e os procedimentos judiciais que tinham feito uso desse tipo de informação. A decisão foi de encontro às melhores práticas internacionais, comprometendo a ferramenta investigativa anticorrupção mais importante. A decisão foi proferida em resposta a um pedido feito pela defesa do Senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro. Flávio está sob investigação por ter supostamente contratado funcionários “fantasmas”, na época em que era parlamentar no estado do Rio de Janeiro, embolsando grandes parcelas de seus salários. A investigação foi iniciada por causa de relatórios de inteligência financeira sobre atividades suspeitas, como, por exemplo, depósitos sequenciais de dinheiro em espécie na sua conta bancária. A decisão foi de encontro aos padrões internacionais e suscitou uma declaração pública por parte do Grupo de Ação Financeira, que expressou “sérias preocupações com a capacidade do Brasil de atender aos padrões internacionais e combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, que resultam das limitações impostas por uma liminar recentemente emitida por um juiz”. Essa também foi uma das motivações para o envio da missão de alto nível do WGB da OCDE para Brasília. A decisão de Toffoli causou a paralização de mais de 900 investigações entre julho e novembro, incluindo casos de organizações criminosas e investigações conduzidas pela Força-Tarefa da Operação LavaJato. Essas cifras se referem apenas às investigações conduzidas no 26

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âmbito federal, o que significa que o impacto da decisão foi provavelmente muito mais abrangente. Nos dias que antecederam as deliberações finais do Supremo Tribunal Federal sobre a questão, outra polêmica teve início por virtude de uma nova decisão de Toffoli. Ele pediu todas as informações sobre transações financeiras suspeitas produzidas tanto pela Receita Federal quanto pelo COAF nos três anos anteriores. Tal pedido se refere a informações confidenciais e privilegiadas de mais de 600 mil pessoas, muitas das quais são funcionários de alto escalão do governo. Toffoli sofreu duras críticas e acabou revertendo sua decisão.

A decisão de Toffoli causou a paralização de mais de 900 investigações entre julho e novembro Em dezembro, o Plenário da Suprema Corte cassou a liminar de Toffoli paralisando o compartilhamento de informações sobre operações financeiras suspeitas. A decisão final permitiu que a Receita Federal e o COAF compartilhem informações com promotores e investigadores, contanto que seguissem os canais oficiais e adequados. O próprio Toffoli voltou atrás no seu posicionamento e, junto com outros nove juízes, apoiou esse entendimento.


Em março de 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu que era responsabilidade dos Tribunais Eleitorais brasileiros analisar e decidir sobre casos de corrupção que envolvessem também fraudes no financiamento de campanhas (“caixa dois”). A estrutura da maioria dos Tribunais Eleitorais, no entanto, é precária, além de já estar sobrecarregada. Juízes e procuradores eleitorais, por exemplo, têm função dupla, combinando – por dois anos – sua atribuição principal com a responsabilidade sobre as matérias eleitorais. Uma proposta para se expandir a jurisdição das varas federais especializadas, atualmente responsáveis pela maioria dos casos de corrupção, com o intuito de abranger as matérias eleitorais, ainda não foi implementada.

apenas um dos 70 casos enviados para os Tribunais Eleitorais resultou em condenação. Há, portanto, o risco de que os Tribunais Eleitorais não terão condições adequadas para conduzir investigações e processos penais pertinentes a esquemas complexos de corrupção e lavagem de dinheiro. Seus recursos insuficientes e a carência de expertise técnica, combinados com a questão da prescrição, são uma receita para a impunidade de agentes públicos de alto escalão e executivos do setor privado. Apesar dos esforços para se adaptarem, um relatório recente revelou que apenas um dos 70 casos enviados para os Tribunais Eleitorais resultou em condenação. Em agosto, o Supremo Tribunal Federal anulou a primeira condenação penal contra um réu da Lava-Jato, o que marcou um retrocesso considerável para a operação. A razão para a decisão do Supremo foi que o período concedido para que os réus

CUMPRIMENTO DA LEI delatores apresentassem as alegações finais de sua defesa perante o juiz tinha coincidido com o prazo de réus “normais”. Não há, todavia, nenhuma regra que estabeleça prazos diferentes (nem subsequentes). O entendimento do Supremo Tribunal Federal – que foi reafirmado numa decisão de outubro – era o de que os réus “normais” devem ter a oportunidade de responder às acusações apresentadas pelos réus delatores e, portanto, deveriam ter a palavra final quando da apresentação das alegações finais. O Supremo ainda não decidiu se esse entendimento se aplicará de forma retroativa, ou seja, a julgamentos anteriores a sua decisão de agosto. Se esse for o caso, isso permitirá que a maioria das condenações da Operação Lava-Jato sejam anuladas – segundo a análise de outros casos, mais de 30 sentenças, relativas a mais de 140 indivíduos condenados, seriam anuladas. Em novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência para proibir prisões efetuadas antes de todos os recursos serem esgotados – a chamada prisão em segunda instância. Isso vem sendo uma disputa jurídica desde 2009, quando o Supremo passou a adotar essa interpretação da Constituição Federal e do Código de Processo Penal brasileiro. Em 2016, o Supremo reconheceu a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Contudo, desde então, houve mudanças na composição do Supremo, e novos entendimentos passaram a ser esposados pelos juízes atuais. Embora a nova decisão encontre respaldo no texto ambíguo da Constituição, e precise ser analisada dentro do contexto de superencarceramento e abuso crônico dos direitos dos prisioneiros no Brasil, ela vai inevitavelmente agravar a velha questão da impunidade nos crimes de colarinho branco.

o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência para proibir prisões efetuadas antes de todos os recursos serem esgotados Estima-se que a última decisão beneficiará mais de 5.000 prisioneiros, dentre os quais está o ex-presidente Lula, que foi solto, no aguardo do julgamento de seu recurso pelo Supremo Tribunal Federal (ele já foi condenado, no “caso do tríplex”, pelo Superior Tribunal de Justiça). Retrospectiva Brasil 2019

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Foto: Dorivan Marinho / SCO / STF

INQUÉRITO SOBRE FAKE NEWS

Em março de 2019, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, abriu um inquérito (INQ 4781) sobre supostas ameaças feitas – e fake news espalhadas – contra o Supremo e seus integrantes. Toffoli nomeou o Ministro Alexandre de Moraes para presidir o inquérito. O inquérito apresenta vários aspectos excepcionais e inconstitucionais: (i) seu objeto não especifica um fato ou uma pessoa, sendo usado para tratar de diversos indivíduos, circunstâncias e situações vistas como ameaçadoras; (ii) ele foi aberto pelo Ministro Dias Toffoli, não como resposta ao pedido de um promotor, que é a prática comum; (iii) o juiz presidente do inquérito foi nomeado diretamente, não selecionado por sorteio; (iv) ele é sigiloso e, por meses, nem mesmo o Procurador-Geral da República teve acesso aos documentos; (v) ele se baseia numa disposição do regimento interno do Supremo Tribunal Federal que se refere a crimes cometidos dentro do prédio do Tribunal; (vi) o Ministro Alexandre de Moraes desempenha a função tanto de promotor quanto de juiz no inquérito, o que impossibilita a imparcialidade – considerando os crimes supostamente cometidos contra o Supremo Tribunal Federal e seus integrantes, é possível que Moraes também tenha sido uma das vítimas. O inquérito tem sido instrumental para o Supremo interferir numa série de circunstâncias, desde censurar uma matéria de revista até 28

Transparência Internacional - Brasil

O inquérito tem sido instrumental para o Supremo interferir numa série de circunstâncias, desde censurar uma matéria de revista até investigar declarações polêmicas feitas por um ex-Procurador-Geral da República investigar declarações polêmicas feitas por um ex-Procurador-Geral da República. Ele também serviu de justificativa para o Supremo Tribunal Federal pedir e acessar os históricos de conversas contidas nos celulares hackeados de autoridades de alto escalão. Ainda dentro do escopo desse inquérito, o Supremo Tribunal Federal decidiu suspender as atividades de auditores


Foto: Rosinei Coutinho / SCO / STF Fotos: 1/2/3- Felipe Sampaio / SCO / STF

seção 03 - positivos & negativos O Supremo Tribunal Federal proferiu uma liminar que bloqueava parcialmente a tentativa do presidente Bolsonaro de extinguir de forma indiscriminada centenas de conselhos participativos de políticas públicas. Após meses de incerteza, o Supremo pacificou a questão da possibilidade de o COAF e a Receita Federal compartilharem informações sobre atividades suspeitas com investigadores e promotores sem necessidade de autorização judicial – seguindo os padrões internacionais. Uma liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, praticamente paralisou o sistema anti-lavagem de dinheiro do Brasil, proibindo o COAF de compartilhar relatórios de inteligência sobre transações financeiras suspeitas com investigadores e suspendendo as investigações criminais no país por quase seis meses.

fiscais que estavam monitorando um grupo de Pessoas Politicamente Expostas, como mencionado acima. Dentre as 133 pessoas que constituem o grupo auditado, relata-se que se encontravam as esposas de dois juízes do Supremo, incluindo a de Toffoli. O Ministro Moraes também suspendeu dois dos auditores envolvidos e determinou a abertura de processos disciplinares contra eles.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que era responsabilidade dos Tribunais Eleitorais brasileiros processar casos de corrupção e lavagem de dinheiro quando estes estiverem atrelados a outros crimes eleitorais (‘caixa dois’) – uma decisão que já está resultando em aumento da impunidade, devido à falta de capacidade da Justiça Eleitoral de lidar com a natureza complexa desses tipos de crimes. O inquérito sobre as fake news (INQ 4781) tem sido instrumental para o Supremo interferir numa série de circunstâncias não-relacionadas. O Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência para proibir prisões efetuadas antes de todos os recursos serem esgotados – uma decisão que pode encontrar respaldo no texto ambíguo da Constituição, e que precisa ser analisada dentro do contexto de superencarceramento e abuso crônico dos direitos dos prisioneiros, mas que inevitavelmente agrava a impunidade nos crimes de colarinho branco.

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Foto: João Américo / Secom / PGR

O Ministério Público (MP) brasileiro recebeu um grau alto de autonomia funcional e financeira na Constituição de 1988. O processo de nomeação de sua líderança, no entanto, continuou sendo altamente político. É atribuição exclusiva do presidente nomear, dentre os profissionais de carreira, o Procurador-Geral da República, sujeito à aprovação do Senado. Contudo, desde 2003, uma tradição importante ganhou força. O presidente passou a nomear o Procurador-Geral a partir de uma lista tríplice de nomes escolhidos via eleição organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Essa prática se tornou uma maneira eficiente de se escolher nomes que gozassem de boa reputação interna, e para aumentar a independência da instituição. O presidente Bolsonaro, no entanto, quebrou essa tradição e escolheu Augusto Aras como Procurador-Geral da República, um procurador que não havia sequer concorrido nas eleições internas. Aras foi aprovado pelo 30

Transparência Internacional - Brasil

Senado e tomou posse como chefe do Ministério Público. Em agosto, a força-tarefa de procuradores da Operação Lava-Jato em Brasília pediu demissão coletiva em protesto contra a recusa da ex-Procuradora-Geral da República Raquel Dodge em investigar um Ministro do Supremo Tribunal Federal e o presidente da Câmara dos Deputados, apesar de provas que eram consideradas substanciais. Pouco tempo após a saída de Dodge, os procuradores retornaram aos seus cargos. A instituição já tinha sofrido um duro golpe na primeira metade do ano com a


MINISTÉRIO PÚBLICO seção 04

publicação mensagens hackeadas dos celulares da força-tarefa de procuradores da Operação Lava-Jato. O conteúdo das mensagens revelava um grau problemático de proximidade entre o juiz Moro e os membros da FT, assim como instâncias de conduta antiética ou questionável. Embora parte das críticas feitas aos integrantes da força-tarefa seja justificada, as publicações da Vaza Jato foram usadas para atacar a operação e os seus agentes. Ainda não

houve relatos de ofensas mais graves ocorridas durante as investigações ou nos julgamentos, como falsificação de provas ou coerção de testemunhas. O escândalo afetou a imagem da Operação Lava-Jato e aprofundou a divisão dentro do Ministério Público. Retrospectiva Brasil 2019

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CUMPRIMENTO DA LEI Em 2019, a Força-Tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba deu início a um número recorde de processos penais: 29 casos. Isso alcançou 150 réus, 99 dos quais ainda não tinham sido acusados. Ainda houve, no mesmo ano, um aumento significativo no volume de trabalho feito pela Força-Tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba – mais de 68 mil atos (em investigações ou casos) foram registrados, um crescimento de 1.200 por cento em relação ao ano anterior. Ao longo de sua história, estima-se que a operação tenha recuperado cerca de 14 bilhões de reais em bens, com mais de 4 bilhões de reais recuperados em 2019. Em fevereiro, prisões foram feitas, relativas à suposta relação imprópria entre a Transpetro e a Estre Ambiental. A Techint também foi alvo de investigações, assim como as empresas marítimas Maersk, Ferchem, e Tide Maritime. Mandados de busca nas empresas Trafigura e Vitol foram cumpridos na Suíça, a pedido de procuradores brasileiros. Em maio, procuradores da Lava Jato passaram a se concentrar nos bancos e seu papel na facilitação da lavagem de dinheiro, primeiro acusando o Banco Paulista e depois investigando Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Caixa, e Santander – os cinco maiores bancos brasileiros. Segundo os procuradores, é possível que os bancos não tenham implementado mecanismos adequados para a prevenção da lavagem de dinheiro, 32

Transparência Internacional - Brasil

no intuito de evitar que fundos ilícitos circulassem pelas suas contas. Bancos de investimento também ficaram sujeitos à fiscalização – BTG Pactual, o maior banco de investimento brasileiro, foi alvo de mandados buscas em agosto e em outubro.

Em 2019, a Força-Tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba deu início a um número recorde de processos penais 29 casos. Isso alcançou 150 réus, 99 dos quais ainda não tinham sido acusados.

No entanto, as discussões sobre a destinação das verbas de multas e de bens recuperados dos esquemas de corrupção foram interrompidas abruptamente por causa de desinformação e confusão. Oitenta por cento das multas que seriam pagas pela Petrobras num acordo de leniência firmado com autoridades estadunidenses seriam excepcionalmente pagas no Brasil. Contudo, o acordo entre as autoridades estadunidenses e brasileiras não especifica os meios para a repatriação desses recursos (equivalentes a US$ 685 milhões), nem sua destinação final. Além disso, tendo em vista que a Petrobras pertence parcialmente ao Estado, o dinheiro não poderia simplesmente ser devolvido aos cofres públicos, visto que isso significaria que o dono da empresa estaria recebendo o dinheiro da multa que ele mesmo pagou. Na falta de regulamentos e jurisprudência específicos para orientá-los, os procuradores da Força-Tarefa da Operação LavaJato em Curitiba desenvolveram uma solução através da criação de um fundo compensatório, para apoiar programas sociais e educacionais e promover transparência e compliance no setor público brasileiro. No entanto, esse arranjo provocou indignação pública, visto que ele não envolvia outras instituições públicas, e reservava um papel ativo – embora pequeno – na governança do fundo aos procuradores de Curitiba. A polêmica levou a um ato hostil da então-Procuradora-Geral da República, Rachel Dodge e


Foto: Divulgação Polícia Federal

uma intervenção por parte do Supremo Tribunal Federal. No fim, os fundos foram redirecionados para os governos estaduais e federal para serem usados no combate a queimadas na Amazônia e em iniciativas de educação. Embora as críticas feitas ao arranjo proposto pela equipe da LavaJato tenham sido razoáveis, o debate foi rapidamente capturado pela atual dinâmica de extremismo na política brasileira e pelos diversos interesses que cercam o caso da Lava-Jato. Com isso, um debate extremamente importante sobre medidas compensatórias relativas aos impactos abrangentes e às vítimas da corrupção foi abortado. Enquanto soluções a longo prazo para a destinação dos recursos recuperados em investigações de corrupção continuam distantes, soluções inovadoras têm sido empreendidas pelos procuradores. Por exemplo, no caso da CCR Rodonorte, como parte do acordo firmado com a empresa, os procuradores negociaram a redução das taxas de pedágio locais, geridas pela CCR Rodonorte, como forma de compensar as comunidades locais pelos danos causados pela corrupção.

seção 04 - positivos & negativos A Força-Tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba deu início a um número recorde de processos penais: 29 casos. Isso é equivalente a 150 réus, 99 dos quais ainda não tinham sido acusados. Os procuradores da Lava Jato passaram a se concentrar nos bancos e em como eles podem desempenhar um papel na facilitação da lavagem de dinheiro, assim como nos negócios mais centrais da Petrobras, implicando empresas marítimas multinacionais gigantes. O presidente Bolsonaro quebrou a tradição estabelecida e escolheu Augusto Aras como Procurador-Geral da República, um procurador que não havia sequer concorrido nas eleições internas. O conteúdo das mensagens publicadas no escândalo da Vaza Jato revelou um grau problemático de proximidade entre o juiz Moro e os procuradores, assim como instâncias de conduta questionável.

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Foto: Nayani Teixeira / Unsplash

Um dos desdobramentos mais preocupantes de 2019 foi a perda de confiança na democracia. Em comparação a 2018, quando 69 por cento da população acreditava que a democracia é a melhor forma de governo, apenas 61 por cento dos brasileiros tinham essa mesma opinião em dezembro de 2019. Ademais, 22 por cento dos brasileiros não enxergam diferença entre um governo democrático e uma ditadura. O espaço cívico tem se contraído por toda a sociedade. Uma sociedade civil vibrante e uma imprensa livre são essenciais para os esforços contínuos de combate à corrupção, além de serem pilares fundamentais de uma sociedade democrática. Em janeiro, em um de seus primeiros atos como presidente, Jair Bolsonaro tentou dar ao seu governo amplos poderes de monitoramento sobre organizações da sociedade civil. Esse esforço acabou fracassando, mas o presidente e membros do alto escalão 34

Transparência Internacional - Brasil

do governo continuam fazendo alegações improcedentes contra organizações nãogovernamentais. Por exemplo, eles alegaram que o Greenpeace foi responsável por um vazamento de petróleo ocorrido na costa brasileira. Em novembro, a polícia estadual do Pará prendeu membros de uma brigada voluntária de combate a incêndios na Amazônia sob acusações infundadas de que ela própria teria ateado o fogo, e conduziu busca e apreensão na sede da organização. Esforços foram empreendidos para diminuir o financiamento das ONGs, o que resultou na suspensão do Fundo Amazônia. Em abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu centenas de conselhos


participativos de políticas públicas. Mesmo que seja verdade que certos conselhos têm sido usados para fins políticos em detrimento de seus mandatos oficiais e dos princípios de composição plural, essa certamente não é a realidade geral do sistema de conselhos participativos, e extingui-los definitivamente não é uma solução adequada. Estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, esses conselhos são ferramentas institucionais capazes de aumentar a transparência, exercer a democracia participativa e fortalecer a legitimidade do governo, visto que eles permitem que a sociedade civil tome parte nos processos de formulação de políticas e de monitoramento em diversas áreas.

SOCIEDADE CIVIL EA IMPRENSA seção 05

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Foto: José Cruz / Agência Brasil

22% dos brasileiros não enxergam diferença entre um governo democrático e uma ditadura

Vários conselhos foram afetados pelo Decreto nº 9.759/2019, incluindo alguns que focavam em direitos LGBT+, direitos das pessoas com necessidades especiais, meio-ambiente, combate à escravidão, políticas indigenistas, entre outros. Até os conselhos que não foram dissolvidos ficaram sujeitos a alterações, no intuito de se reduzir o espaço de participação das ONGs, como foi o caso do Conselho Nacional do Meio-Ambiente. Em junho, o Supremo Tribunal Federal revogou o decreto, parcial e temporariamente. A ordem judicial do Supremo foi dada após o Tribunal considerar que a extinção generalizada dos conselhos pelo presidente era inconstitucional.

Espaciais (INPE), que é responsável pela produção e disseminação de dados sobre o desmatamento na Amazônia. A descaracterização dos dados do INPE – amplamente considerado como uma fonte de dados confiável e indispensável no combate ao desmatamento ilegal – foi uma resposta ao instituto ter publicado dados que demonstravam o aumento do desmatamento na Amazônia.

Ataques e alegações falsas contra a Transparência Internacional também foram preferidos pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.

o presidente e membros do alto escalão do governo continuam fazendo alegações improcedentes contra organizações não-governamentais.

De acordo com o mais recente relatório Free to Think 2019, conduzido pelo Projeto de Monitoramento da Liberdade Acadêmica da organização Scholars at Riks (SAR), há “uma escalada de pressões políticas sobre as universidades brasileiras, incluindo batidas nos campi, ameaças e ataques a estudantes que fazem parte de minorias e legislação que ameaça as atividades e os valores centrais das universidades”. O presidente Bolsonaro tem interferido rotineiramente na nomeação de reitores das universidades federais, contrariando a prática padrão de nomear o candidato mais votado. Uma regra que libera formalmente o presidente dessa tradição foi estabelecida. Outros centros de pesquisa também sofreram com desinformação, abusos e interferência política. Em agosto, o presidente Bolsonaro demitiu Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas 36

Transparência Internacional - Brasil

Com relação à imprensa, os jornalistas brasileiros sofrem perseguições frequentemente. O presidente Bolsonaro atacou e ameaçou os veículos tradicionais de imprensa repetidas vezes. Jornalistas sofreram mais de 200 ataques – um aumento de 54 por cento, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas – sendo o presidente Bolsonaro responsável por mais da metade deles. Não é de surpreender que o Brasil tenha caído três posições no último Índice de Liberdade de Imprensa,


Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

alcançando a 105ª posição (dentre 180 países). De acordo com o Repórteres sem Fronteiras, a eleição de Bolsonaro “anunciou uma era sombria para a democracia e a liberdade de imprensa no Brasil”.

Brasil tenha caído três posições no último Índice de Liberdade de Imprensa, alcançando a 105ª posição (dentre 180 países). Mudanças recentes na legislação também foram denunciadas como medidas retaliatórias contra a imprensa. Dentre os ataques mais recentes, o governo federal cancelou sua assinatura da Folha de São Paulo e fez ameaças aos anunciantes do jornal. O presidente Bolsonaro também tentou excluir ilegalmente a Folha de uma licitação e ameaçou não renovar a concessão da TV Globo em 2022 após a transmissão de reportagens sobre o possível envolvimento da sua família no assassinato de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro. Dados sobre os gastos do governo federal com publicidade durante 2019 já haviam apontado para um processo decisório

tendencioso que favorece veículos da mídia mais alinhados politicamente com o presidente – em detrimento de critérios objetivos, como níveis de audiência. Embora a concentração da mídia brasileira seja um problema antigo, os sinais de interferência política e de conflitos de interesse indicam que a política atual não está sendo voltada para o aumento da pluralidade da mídia, mas sim para promover os veículos de comunicação que apoiam o governo atual. seção 05 - positivos & negativos O Supremo Tribunal Federal revogou parcialmente uma decisão do governo federal que tentava extinguir centenas de conselhos participativos de política pública. Jornalistas e ativistas se mantiveram firmes frente aos diversos ataques e em defesa da liberdade de imprensa e de associação garantidas pela Constituição. Alegações infundadas contra organizações não-governamentais continuam sendo feitas pelo presidente e por membros do alto escalão do governo. O presidente Jair Bolsonaro extinguiu centenas de conselhos consultivos, uma decisão que acabou sendo revogada pelo Supremo Tribunal Federal. O presidente Bolsonaro tem interferido rotineiramente na nomeação de reitores das universidades federais – contrariando a prática padrão de nomear o candidato mais votado – e demitiu o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) após a publicação de dados que mostravam um aumento no desmatamento na Amazônia. O presidente Bolsonaro ameaçou os veículos de mídia tradicionais repetidas vezes, atacou os jornalistas e insuflou o ódio contra esses profissionais nas mídias sociais. Mudanças recentes na legislação também foram denunciadas como sendo medidas retaliatórias contra a imprensa.

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Foto: Vinicius Amano / Unsplash

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RECOMEN -DAÇÕES Retrospectiva Brasil 2019

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CONGRESSO NACIONAL O Congresso Nacional deve deliberar e aprovar reformas estruturais anticorrupção baseadas no pacote de medidas elaboradas por especialistas brasileiros: as Novas Medidas contra a Corrupção.

JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO O Poder Judiciário e o Ministério Público devem agir frente à sua ineficiência administrativa; à falta de responsabilização de seus membros por mau desempenho e corrupção; e aos privilégios, como férias abusivas e remunerações exorbitantes, que resultam na prestação jurisdicional ineficiente, morosa e seletiva.

JUSTIÇA ELEITORAL A Justiça Eleitoral e os órgãos de controle devem atuar em coordenação nas eleições municipais de 2020 contra o financiamento ilícito de campanhas e o desvio de fundos públicos sob controle dos partidos, incluindo a utilização de candidatas laranjas e novas modalidades de manipulação virtual, como uso de robôs e disseminação de fake news.

GOVERNO FEDERAL O governo federal deve afastar seus membros investigados por corrupção, além de propor e defender a aprovação junto ao Congresso Nacional de reformas estruturais anticorrupção. Deve respeitar integralmente as liberdades constitucionais de expressão e associativismo, abstendo-se de hostilizar profissionais da imprensa e de organizações da sociedade civil. 40

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Foto: Jpsue Isai Ramos Figueroa / Unsplash

GOVERNOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS Os governos estaduais e municipais devem aprimorar sua engenharia institucional de controle, atualizar seus marcos legais anticorrupção e promover Programas de Integridade que fortaleçam o enfrentamento da corrupção nos níveis subnacionais.

SETOR PRIVADO O setor privado deve promover ações coletivas para o estabelecimento de códigos de conduta setoriais, pactos de integridade, inserção de valores éticos nos processos de capacitação de mão-de-obra e fomento ao compliance nas cadeias de suprimento, incluindo pequenas e médias empresas. Deve também exercer a liderança das federações de indústria e comércio e outras associações empresariais para a promoção de melhores práticas de integridade pública e privada.

SOCIEDADE BRASILEIRA A sociedade brasileira deve exercer conscientemente seu direito de voto nas eleições municipais de 2020 para eleger candidatos com passado limpo, compromisso com a pauta anticorrupção e respeito aos valores democráticos, pressionando também os partidos para que incrementem sua transparência, governança e democracia interna.

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Foto: Peter Nicola / Unsplash

Transparência Internacional - Brasil Associação Transparência e Integridade Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 São Paulo, SP brasil@br.transparency.org www.transparenciainternacional.org.br


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